Não sei se foi uma miragem auditiva (uma "ouviragem") mas, ao deitar numa dessas tardes preguiçosas de verão intenso, ouvi ao longe, já às margens do rio Morfeu, um apito, o delicioso apito do vendedor de picolés da minha infância. Pensei: "Agora vou de vez!", sorridente.
Que nada! Logo vêm à cabeça os ipês para, hoje em dia, nos atrapalhar o sono: IPTU, IPVA, IPTcétera.
Não funcionam mais, os apitos de outrora. O mesmo delicioso som já não faz mais efeito, pois os ouvidos mudaram.
Som prazeiroso como esse só a da monótona e metódica cigarra, que embalavam os sonos da criança feliz na moleza das tardes estivais.
Também não as ouço mais. Foram cantar em outra freguesia. Mas imagino que também não fariam o mesmo efeito.
Mudando o órgão do sentido, mas tentando recuperar - não sei por que - as emoções da infância, dia desses me atraquei (cuidando para que ninguém me visse) a uma daquelas caixas de sorvete seco que se encontram em supermercados de atacado. Deliciosos, não é? Só fiquei na dúvida entre ele e os suspirões coloridos.
Eca! Não têm mais o sabor de antigamente. Puro e sem vergonha açúcar mas, também, o que é que eu esperava? A doçura estava no contexto, no entorno, e até mesmo na proibição de comer aquelas maravilhosas "porcarias". Agora? Agora eu posso! Coisa mais sem graça!
Não que a memória traia. Ela apenas embeleza a experiência que pode não ter sido tão bela assim. Que fique tudo lá, até que ela também se apague, como o gosto doce da infância.